V Pregação da Quaresma – texto integral
Cidade do Vaticano
O Pregador da Casa Pontifícia, padre Raniero Cantalamessa OFM, propôs ao Papa Francisco e à Cúria reunidos na Capela Redemptoris Mater, no Vaticano, a quinta e última pregação da Quaresma, intitulada “Usemos as armas da luz – A pureza cristã”. Confira o texto na íntegra:
“A pureza cristã
Em nosso comentário à parênese da Carta aos Romanos, chegamos ao ponto em que se diz:
“A noite vai adiantada, e o dia vem chegando. Despojemo-nos das obras das trevas e vistamo-nos das armas da luz. Comportemo-nos honestamente, como em pleno dia: nada de orgias, nada de bebedeira; nada de desonestidades nem dissoluções; nada de contendas, nada de ciúmes. Ao contrário, revesti-vos do Senhor Jesus Cristo e não façais caso da carne nem lhe satisfaçais aos apetites” (Rm 13, 12-14).
Santo Agostinho, nas Confissões, nos diz o lugar que esta passagem teve em sua conversão. Ele já havia alcançado uma quase completa adesão à fé; as suas objeções haviam sido aniquiladas uma após a outra e a voz de Deus se tornara cada vez mais urgente. Mas havia uma coisa que o detinha: o medo de não ser capaz de viver casto. Ele vivia, como sabemos, com uma mulher sem ser casado.
Estava no jardim da casa que o abrigava, nas garras dessa luta interior e com lágrimas nos olhos, quando, de uma casa próxima, ouviu uma voz, como um menino ou menina, que repetia: “Tolle, lege!, Pegue, leia; pegue, leia!”. Ele interpretou estas palavras como um convite de Deus e, tendo ao alcance das mãos o livro das Epístolas de São Paulo, abriu-o ao acaso, determinado a considerar como vontade de Deus a primeira frase em que seu olhar se fixasse.
A palavra em que seu olhar caiu foi, de fato, aquela da Carta aos Romanos que acabamos de mencionar. Uma luz de segurança brilhou dentro dele (lux securitatis), o que fez desaparecer toda a escuridão da incerteza. Ele sabia agora que, com a ajuda de Deus, poderia ser casto[1].
As coisas que o Apóstolo, naquela passagem, chama “obras das trevas” são as mesmas que em outros lugares define “desejos, ou obras, da carne” (cf. Rm 8,13; Gl 5,19) e as coisas que chama “armas da luz” são as mesmas que em outros lugares chama de “obras do Espírito”, ou “frutos do Espírito” (cf. Gl 5, 22). Entre essas obras da carne é enfatizada, com dois termos (koite e aselgeia), a devassidão sexual, à qual se opõe a arma da luz que é a pureza.
O Apóstolo não se ocupa, no presente contexto, em falar desse aspecto da vida cristã; mas da lista dos vícios, colocada no início da Carta (cf. Rm 1, 26ss), sabemos quão importante era isso para os seus olhos. São Paulo estabelece uma ligação muito estreita entre pureza e santidade e entre pureza e Espírito Santo:
“Esta é a vontade de Deus: a vossa santificação; que eviteis a impureza; que cada um de vós saiba possuir o seu corpo santa e honestamente, sem se deixar levar pelas paixões desregradas, como os pagãos que não conhecem a Deus; e que ninguém, nesta matéria, oprima nem defraude a seu irmão, porque o Senhor faz justiça de todas estas coisas, como já antes vo-lo temos dito e asseverado. Pois Deus não nos chamou para a impureza, mas para a santidade. Por conseguinte, desprezar estes preceitos é desprezar não a um homem, mas a Deus, que nos deu o seu Espírito Santo.” (1 Ts 4, 3-8)
Por isso, procuremos reunir esta última “exortação” da palavra de Deus, aprofundando o fruto do Espírito que é a pureza.
1. As motivações cristãs da pureza
Na Carta aos Gálatas, São Paulo escreve: “O fruto do Espírito é amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, autodomínio” (Gl 5, 22). O termo grego original, que traduzimos com “autodomínio” é enkrateia e tem uma gama muito ampla de significados; pode-se exercer, de fato, o domínio de si no comer, no falar, no controle da ira, etc.
Aqui, porém, como nos demais, quase sempre no Novo Testamento, isso significa o domínio de si em uma esfera bem precisa da pessoa, ou seja, no âmbito da sexualidade. Deduzimos isso do fato de que, pouco acima, elencando as “obras da carne”, o Apóstolo chama porneia , ou seja, impureza, aquilo que se opõe ao domínio de si (é o mesmo termo do qual deriva “pornografia”!).
Nas traduções modernas da Bíblia, o termo porneia é traduzido ora como prostituição, ora como impureza, ora como fornicação ou adultério, e ora como outros vocábulos. A ideia de fundo, contida no termo é, todavia, aquela de “vender-se”, de alienar o próprio corpo, portanto, de prostituir-se (pernemi, em grego, significa “me vendo”).
Usando este termo para indicar quase todas as manifestações de desordem sexual, a Bíblia diz que todo pecado de impureza é, em certo sentido, um prostituir-se, um vender-se.
Os termos usados por São Paulo nos dizem, portanto, que são possíveis, com relação ao nosso próprio corpo e a própria sexualidade, duas atitudes opostas, uma atitude do Espírito e a outra obra da carne; uma, virtude e a outra vício.
A primeira atitude é conservar o controle de si e do próprio corpo; a segunda é, pelo contrário, vender ou alienar o próprio corpo, ou seja, dispor da sexualidade à vontade, para fins utilitaristas e diversos daqueles para os quais foi criada; um transformar o ato sexual em um ato venal, mesmo que o útil em questão não seja sempre constituído pelo dinheiro, como no caso da prostituição verdadeira e real, mas também pelo prazer egoísta como um fim em si mesmo.
Quando falamos da pureza e da impureza em simples listas de virtudes ou de vícios, sem aprofundar a matéria, a linguagem do Novo Testamento não é muito diferente da linguagem dos moralistas pagãos, por exemplo, dos Estoicos.
Até os moralistas pagãos exaltavam o domínio de si, mas somente em função da quietude interior, da impassividade (apatheia), do autodomínio; a pureza era governada, para eles, pelo princípio da “reta razão”.
Na realidade, porém, dentro desses velhos vocabulários pagãos, existe um conteúdo totalmente novo que brota, como sempre, do querigma. Isso já é visível em nosso texto, onde a devassidão é contraposta, de modo muito significativo, como seu contrário, do “revestir-se do Senhor Jesus Cristo”.
Os primeiros cristãos foram capazes de compreender este conteúdo novo, porque isso era objeto específico de catequese em outros contextos.
Vamos agora examinar uma dessas catequeses específicas sobre pureza, para descobrir o verdadeiro conteúdo e as verdadeiras motivações cristãs dessa virtude que derivam do evento pascal de Cristo. Trata-se do texto de 1 Cor 6, 12-20. Parece que os Coríntios – talvez deturpando uma frase do Apóstolo – alegassem o princípio: “tudo me é lícito”, para justificar também os pecados da impureza.
Na resposta do Apóstolo está contida uma motivação absolutamente nova da pureza que brota do mistério de Cristo. Não é lícito – diz ele – entregar-se à impureza (porneia), não é lícito vender-se, ou dispor de si à vontade, pelo simples fato de que nós não nos pertencemos mais, não somos nossos, mas de Cristo. Não se pode dispor do que não é nosso: “Não sabeis que os vossos corpos são membros de Cristo […] e que não pertenceis a vós mesmos?” (1 Cor 6, 15.19).
A motivação pagã é, em certo sentido, invertida; o valor supremo a ser salvaguardado não é mais o domínio de si, mas o “não domínio de si”. “O corpo não é para a impureza, mas para o Senhor!” (1 Cor 6, 13): a motivação última da pureza é, portanto, que “Jesus é o Senhor!”. A pureza cristã, em outras palavras, não consiste tanto em estabelecer o domínio da razão sobre os instintos, mas em estabelecer o domínio de Cristo sobre toda a pessoa, razão e instintos.
Esta motivação cristológica da pureza torna-se mais convincente com aquilo que São Paulo acrescenta no mesmo texto: não somos apenas genericamente “de” Cristo, como sua propriedade ou sua coisa; nós somos o próprio corpo de Cristo, os seus membros! Isso torna tudo imensamente mais delicado, porque significa que, ao cometer a impureza, eu prostituo o corpo de Cristo, realizo uma espécie de sacrilégio odioso; uso da “violência” ao corpo do Filho de Deus. Diz o Apóstolo: “Tomarei então os membros de Cristo e torná-los-ei membros de uma prostituta?” (1 Cor 6, 15).
A esta motivação cristológica, acrescenta-se em seguida aquela pneumatológica, isto é, relativa ao Espírito Santo: “Ou não sabeis que o vosso corpo é templo do Espírito Santo que está em vós?” (1 Cor 6, 19). Abusar do próprio corpo é, portanto, profanar o templo de Deus; mas se alguém destruir o templo de Deus, Deus o destruirá (cf. 1 Cor 3, 17). Cometer impureza é “entristecer o Espírito Santo de Deus” (cf. Ef 4, 30).
Juntamente com as motivações cristológicas e pneumatológicas, o Apóstolo também menciona uma motivação escatológica, que se refere ao destino final do homem: “Deus, que ressuscitou o Senhor, também nos ressuscitará” (1 Cor 6, 14). O nosso corpo está destinado à ressurreição; está destinado a participar, um dia, na bem-aventurança e na glória da alma. A pureza cristã não se baseia no desprezo do corpo, mas, ao contrário, na grande estima de sua dignidade.
O Evangelho – diziam os Padres da Igreja ao combater os gnósticos – não prega a salvação “de” carne, mas a salvação “da” carne. Aqueles que consideram o corpo um “traje estrangeiro”, destinado a ser abandonado aqui, não possuem os motivos que o cristão tem para mantê-lo imaculado.
O Apóstolo conclui a sua catequese sobre a pureza com o convite apaixonado: “Glorificai, pois, Deus no vosso corpo” (1 Cor 6, 20). O corpo humano é, portanto, para a glória de Deus e expressa essa glória quando a pessoa vive a própria sexualidade e toda a sua corporeidade em obediência amorosa à vontade de Deus, que é como dizer: em obediência ao próprio sentido da sexualidade, à sua natureza intrínseca e originária que não é aquela de vender-se, mas aquela de doar-se.
Tal glorificação de Deus através do seu próprio corpo não exige necessariamente a renúncia ao exercício da própria sexualidade. No capítulo imediatamente seguinte, isto é, em 1 Cor 7, São Paulo explica, de fato, que tal glorificação de Deus é expressa de duas maneiras e em dois carismas diferentes: ou através do casamento, ou através da virgindade. Glorifica a Deus em seu corpo a virgem e o celibatário, mas também o glorifica quem se casa, desde que todos vivam as exigências do próprio estado.
2. Pureza, beleza e amor ao próximo
Na nova luz que emergiu do mistério pascal e ilustrada até agora por São Paulo, o ideal da pureza ocupa um lugar privilegiado em toda síntese da moral cristã do Novo Testamento. Não existe, podemos dizer, uma carta de São Paulo na qual ele não dedique um espaço, quando descreve a vida nova no Espírito (cf. por exemplo, Ef 4, 17-5, 33; Cl 3, 5 12).
Este requisito fundamental de pureza é especificado, de tempos em tempos, de acordo com os diferentes estados de vida dos cristãos. As epístolas pastorais mostram como a pureza deve ser configurada em jovens, mulheres, casais, idosos, viúvas, presbíteros e bispos; nos apresentam a pureza em suas várias faces de castidade, fidelidade conjugal, sobriedade, continência, virgindade, modéstia.
No seu conjunto, este aspecto da vida cristã determina o que o Novo Testamento – de modo especial, as Epístolas pastorais – chama de “beleza” ou o caráter “belo” da vocação cristã, que, fundindo-se com outra característica, a de bondade, forma o ideal único da “boa beleza”, ou da “bela bondade”, o que nos levou a falar, indiferentemente, tanto de obras boas como de obras belas.
A tradição cristã, chamando a pureza de “bela virtude”, recolheu esta visão bíblica, que expressa, apesar dos abusos e das ênfases muito unilaterais que também houve, algo de profundamente verdadeiro. A pureza, de fato, é beleza!
Essa pureza é um modo de vida, mais que uma única virtude. Tem uma gama de manifestações que vai além da esfera propriamente sexual. Há uma pureza do corpo, mas há também uma pureza do coração que evita não só os atos, mas também os desejos e os pensamentos “feios” (cf. Mt 5, 8.27-28).
Há também uma pureza da boca que consiste, negativamente, em abster-se de palavras obscenas, de vulgaridades e futilidades (cf Ef 5, 4; Cl 3, 8) e, positivamente, na sinceridade e retidão do falar, ou seja, no dizer: “sim, sim” e “não, não”, a imitação do Cordeiro imaculado “em cuja boca não se encontrou engano” (cf. 1 Pd 2, 22). Finalmente, há uma pureza ou claridade dos olhos e do olhar.
O olho – dizia Jesus – é a luz do corpo; se o olho é puro e claro, todo o corpo está na luz (cf. Mt 6, 22s; Lc 11, 34). São Paulo usa uma imagem muito sugestiva para indicar este novo estilo de vida: diz que os cristãos, nascidos pela Páscoa de Cristo, devem ser “fermento de pureza e de sinceridade” (cf. 1 Cor 5, 8). O termo usado aqui pelo Apóstolo – eilikrinéia – contém, por si só, a imagem de uma “transparência solar”. Em nosso próprio texto, ele fala da pureza como uma “arma da luz”.
Hoje em dia, tende-se a contrapor entre si os pecados contra a pureza e os pecados contra o próximo e tende-se a considerar verdadeiro pecado somente o que é feito contra o próximo; ironiza-se, às vezes, o culto excessivo concedido no passado à “bela virtude”.
Essa atitude, em parte, pode ser explicada; a moral havia enfatizado muito unilateralmente, no passado, os pecados da carne, até criar, por vezes, verdadeiras e reais neuroses, em detrimento aos deveres para com o próximo e em detrimento da própria virtude da pureza que foi, assim, empobrecida e reduzida a virtude quase somente negativa, a virtude de saber dizer não. Mas agora, porém, se passou ao excesso oposto e se tende a minimizar os pecados contra a pureza, privilegiando (muitas vezes somente de palavra) uma atenção ao próximo. O erro de fundo está no opor estas duas virtudes.
A palavra de Deus, longe de opor pureza e caridade, liga-as intimamente uma a outra. Basta ler a continuação da passagem da Primeira Carta aos Tessalonicenses que mencionei no início, para entender como as duas coisas são interdependentes entre si segundo o Apóstolo (cf. 1 Ts 4, 3-12). O propósito único da pureza e da caridade é ser capaz de levar uma vida “cheia de decoro”, isto é, íntegra em todas as suas relações, tanto em relação a si mesmos quanto em relação aos outros. No nosso texto, o Apóstolo resume tudo isso com a expressão: “comportar-se honestamente como em pleno dia” (cf. Rm 13, 13).
Pureza e amor ao próximo estão entre si como o autocontrole e a doação aos demais. Como posso doar-me, se não me possuo, mas sou escravo das minhas paixões? Como posso doar-me aos demais, se não compreendi ainda o que me disse o Apóstolo, ou seja, que não me pertenço e que o meu próprio corpo não é meu, mas do Senhor?
É uma ilusão acreditar que se pode colocar junto um autêntico serviço aos irmãos, que requer sempre sacrifício, altruísmo, esquecimento de si e generosidade, e uma vida pessoal desordenada, inteiramente voltada a gratificar a si mesmos e as próprias paixões. Terminamos, inevitavelmente, por instrumentalizar os irmãos, como se instrumentaliza o próprio corpo. Não sabe dizer “sim” aos irmãos quem não sabe dizer “não” a si mesmo.
Uma das “desculpas” que mais contribuem para favorecer o pecado de impureza, na mentalidade popular, e eliminar qualquer responsabilidade, é a indiferença do tanto faz, pois isso não faz mal a ninguém, não viola os direitos e a liberdade dos demais, a menos – se fala – que se trate de violência carnal. Mas, além do fato de que viola o direito fundamental de Deus de dar uma lei às suas criaturas, essa “desculpa” é falsa também com relação ao próximo.
Não é verdade que o pecado de impureza termina com quem o comete. Há uma solidariedade entre todos os pecados. Todo pecado, onde quer que seja e por quem quer que seja cometido, contagia e polui o ambiente moral do homem; este contágio é chamado por Jesus “o escândalo” e é condenado por ele com algumas das palavras mais terríveis de todo o Evangelho (cf Mt 18, 6 ss; Mc 9, 42 ss; Lc 17, 1 s). Mesmo os maus pensamentos que estagnam no coração, de acordo com Jesus, poluem o homem e, portanto, o mundo: “Do coração vêm os propósitos maus; os homicídios, os adultérios, as prostituições… Estas são as coisas que poluem o homem”(Mt 15, 19-20).
Todo pecado produz uma erosão dos valores e todos juntos criam o que Paulo chama de “a lei do pecado” e da qual ele ilustra o terrível poder sobre todos os homens (cf. Rm 7, 14ss). No Talmud judaico se lê uma parábola que ilustra bem a solidariedade que existe no pecado e o dano que cada pecado, também o pessoal, faz aos demais: “Algumas pessoas estavam a bordo de um barco. Uma delas pegou uma broca e começou a fazer um buraco embaixo dela. Os outros passageiros, vendo, disseram-lhe: “O que você está fazendo? – Ele respondeu: O que isso importa a vocês? Eu não estou fazendo o buraco debaixo do meu assento? – Mas eles responderam: – Sim, mas a água virá e nos afogará a todos!” A própria natureza começou a nos enviar sinais sinistros de protesto contra certos modernos abusos e excessos na esfera da sexualidade.
3. Pureza e renovação
Estudando a história das origens cristãs, fica claro com clareza que foram dois os principais instrumentos com o qual a Igreja conseguiu transformar o mundo pagão da época; o primeiro foi o anúncio da Palavra, o querigma, e o segundo o testemunho de vida dos cristãos, a martyria; e se vê como, no âmbito do testemunho de vida, duas foram, de novo, as coisas que mais surpreenderam e converteram os pagãos: o amor fraterno e a pureza dos costumes. Já a Primeira Carta de Pedro menciona o assombro do mundo pagão em face do teor de vida tão diferente dos cristãos. Escreve:
“Baste-vos que no tempo passado tenhais vivido segundo os caprichos dos pagãos, em luxúrias, concupiscências, embriaguez, orgias, bebedeiras e criminosas idolatrias. Estranham eles agora que já não vos lanceis com eles nos mesmos desregramentos de libertinagem, e por isso vos cobrem de calúnias.” (1 Pd 4, 3-4).
Os Apologistas – isto é, os escritores cristãos que escreveram em defesa da fé, nos primeiros séculos da Igreja – atestam que os padrões de vida puro e casto dos cristãos era, para os pagãos, algo de “extraordinário e inacreditável”. Em particular, teve um impacto extraordinário sobre a sociedade pagã a reestruturação da família, que as autoridades da época queriam reformar, mas que eram impotentes para conter a desintegração.
Um dos argumentos que São Justino Mártir utiliza para basear a sua Apologia dirigida ao imperador Antonino Pio, é este: os imperadores romanos estão preocupados em restaurar os costumes e a família e se esforçam para emanar, para esse fim, oportunas leis, que se revelam, no entanto, insuficientes. Bem, por que não reconhecer o que conseguiram obter as leis cristãs junto àqueles que a acolheram e a ajuda que podem dar também à sociedade civil? Algumas donzelas cristãs brilhantes, mortas mártires, mostraram até onde chegava, nesse ponto, a força do cristianismo.
Não devemos pensar que a comunidade cristã estava totalmente livre de desordens e pecados em questões sexuais. São Paulo teve que repreender um caso, até mesmo, de incesto, na comunidade de Corinto. Mas esses pecados eram claramente reconhecidos como tais, denunciados e corrigidos. Não se exigia que se fosse sem pecado, nesta matéria, como no resto, mas de lutar contra o pecado.
Agora vamos dar um salto das origens cristãs para os nossos dias. Qual é a situação no mundo de hoje em relação à pureza? A mesma, se não pior, do que era naquele tempo! Nós vivemos em uma sociedade que, em termos de costumes, mergulhou em pleno paganismo e em plena idolatria do sexo. A tremenda denúncia que São Paulo faz do mundo pagão, no começo da Carta aos Romanos, se aplica, ponto a ponto, ao mundo de hoje, especialmente nas sociedades assim chamadas do bem-estar (cf. Rm 1, 26-27.32).
Também hoje, não só se fazem essas coisas e outras piores, mas também se tenta justificá-las, ou seja, justificar toda licença moral e toda perversão sexual, desde que – dizem – ela não faça violência aos outros e não prejudique a liberdade dos outros. Como se Deus não tivesse nada a ver com isso!
Famílias inteiras são destruídas e dizem: o que há de errado? Não há dúvida de que certos juízos da moral sexual tradicional deviam ser revistos e que as modernas ciências do homem têm ajudado a lançar luz sobre certos mecanismos e condicionamentos da psique humana que removem ou diminuem a responsabilidade moral de certos comportamentos considerados, uma vez, pecaminosos.
Mas este progresso não tem nada a ver com o pansexualismo de certas teorias pseudo-científicas e permissivas que tendem a negar qualquer norma objetiva em questões de moral sexual, reduzindo tudo a uma questão de evolução espontânea dos costumes, ou seja, a uma questão de cultura. Se examinarmos de perto aquela que é chamada de revolução sexual dos nossos dias, percebemos, com espanto, que ela não é simplesmente uma revolução contra o passado, mas é, muitas vezes, também uma revolução contra Deus.
4. Puro de coração!
Mas eu não quero me demorar muito descrevendo a situação atual que nos circunda que, além disso, todos conhecemos bem. Muito me interessa, de fato, descobrir e transmitir o que Deus quer de nós cristãos em tal situação. Deus nos chama ao mesmo empreendimento ao qual ele chamou nossos primeiros irmãos de fé: “se opor a essa torrente de perdição”. Nos chama a fazer a “beleza” da vida cristã brilhar novamente diante dos olhos do mundo. Nos chama a lutar pela pureza. Lutar com tenacidade e humildade; não necessariamente a ser, todos e imediatamente, perfeitos. Esta é uma luta tão antiga quanto a própria Igreja.
Hoje há algo novo que o Espírito Santo nos chama a fazer: ele nos chama a testemunhar ao mundo a inocência original das criaturas e das coisas. O mundo afundou muito baixo; o sexo – foi escrito – subiu na cabeça de todos. Algo muito forte é necessário para quebrar esse tipo de narcose e intoxicação sexual. É necessário despertar no homem a nostalgia da inocência e da simplicidade que ele traz em seu coração com pungência, ainda que tantas vezes coberta de lama.
Não de uma inocência de criação que não há mais, mas de uma inocência de redenção que nos foi devolvida por Cristo e que nos é oferecida nos sacramentos e na palavra de Deus. São Paulo assinala este programa quando escreve aos Filipenses: ” Sejam irrepreensíveis e simples, filhos de Deus imaculados no meio de uma geração perversa e degenerada, na qual vocês devem brilhar como estrelas no mundo, mantendo no alto a palavra de vida “(Fp 2, 15 ss). Isto é o que o apóstolo chama, em nosso texto, “usar as armas da luz”.
Não basta mais uma pureza feita de medos, de tabus, de proibições, de fuga recíproca entre o homem e a mulher, como se um fosse, sempre e necessariamente, uma armadilha para o outro e um inimigo potencial, mais que uma “ajuda”. No passado, a pureza tinha sido reduzida, às vezes, pelo menos na prática, precisamente a este complexo de tabu, de proibições e de medos, como se a virtude tivesse que se envergonhar perante o vício e não, pelo contrário, o vício a ter que se envergonhar perante a virtude.
Devemos desejar, graças à presença em nós do Espírito, uma pureza que seja mais forte do que o vício; uma pureza positiva, não somente negativa, que seja capaz de fazer-nos experimentar a verdade dessa palavra do Apóstolo: “Tudo é puro para os que são puros!” (Tt 1, 15) e desta outra palavra da Escritura: ” Aquele que está em ti é maior do que aquele que está no mundo “(1 Jo 4, 4).
Temos de começar curando a raiz que é o “coração”, porque é dali que sai tudo aquilo que polui verdadeiramente a vida de uma pessoa (cf. Mt 15, 18 ss). Jesus dizia: “Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus” (Mt 5, 8). Eles realmente verão, isto é, terão novos olhos para ver o mundo e Deus, olhos limpos que sabem ver o que é belo e o que é feio, o que é verdade e o que é mentira, o que é vida e o que é morte. Olhos, em suma, como os de Jesus.
Com que liberdade Jesus podia falar de tudo: das crianças, da mulher, da gestação, do parto… Olhos como os de Maria. A pureza não consiste mais, então, em dizer “não” às criaturas, mas em dizer “sim”; sim em quanto criaturas de Deus que eram, e permanecem, “muito boas”.
Nós não nos iludimos. Para poder dizer esse “sim”, devemos passar pela cruz, porque depois do pecado, nosso olhar sobre as criaturas se tornou nublado; a concupiscência foi desencadeada em nós; a sexualidade não é mais pacífica, tornou-se uma força ambígua e ameaçadora que nos atrai contra a lei de Deus, apesar de nossa própria vontade. Na primeira meditação desta Quaresma, insistimos em um aspecto particularmente atual e necessário da mortificação: a dos olhos. Um jejum saudável das imagens é mais importante hoje do que o jejum das comidas e das bebidas.
Concluo trazendo à vossa mente a experiência de Santo Agostinho recordada no início. Depois daquela experiência, o santo inventou uma oração toda sua para obter a castidade: “Senhor, disse, tu me ordenas ser casto. Pois bem, dá-me o que me ordenas e então ordena-me o que quiseres”. Uma oração que todos podemos fazê-la nossa, recordando que nisso, bem como em qualquer outro campo, sem a graça de Deus não podemos fazer nada.
(Tradução de Thácio Siqueira, Associação Marie de Nazareth)
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[1] S. Agostino, Confessioni, VIII, 11-12.