Restaram dois: miséria e misericórdia!

Na liturgia deste quinto domingo da Quaresma, somos conduzidos à contemplação da misericórdia e da justiça divinas, manifestadas no encontro de Jesus com a mulher adúltera (Jo 8,1-11). Este episódio, situado no primeiro Domingo da Paixão, antecipa o mistério da cruz, onde a justiça de Deus se cumpre na misericórdia oferecida a todos os pecadores. A urgência quaresmal intensifica-se, convocando cada coração à conversão verdadeira, pois o tempo da graça se aproxima do seu termo.
O nosso cenário é o Templo, onde Jesus ensina. Os escribas e fariseus, desejosos de testá-lo, apresentam-lhe uma mulher surpreendida em adultério, invocando a Lei de Moisés, que ordenava a lapidação (Lv 20,10; Dt 22,22). O dilema proposto visa colocar Jesus em contradição: caso dispense a pena, contradiz a Lei; caso a confirme, desvirtua sua própria mensagem de amor e perdão. No entanto, ao invés de responder de imediato, inclina-se e escreve no chão. O gesto enigmático, dizem os exegetas,pode remeter a Jr 17,13: “Os que se afastam de mim serão inscritos na terra, pois abandonaram o Senhor, a fonte das águas vivas.” Os acusadores são, assim, confrontados com a verdade de seus próprios corações.
Diante da insistência dos adversários, Nosso Senhor pronuncia a célebre sentença: “Aquele que dentre vós estiver sem pecado, seja o primeiro a lhe atirar uma pedra”. A afirmação não relativiza o pecado da mulher, mas desloca a acusação para a condição universal de pecadores, recordando que todos necessitamos da Divina Misericórdia. Um a um, os acusadores se retiram, reconhecendo a própria fragilidade. Santo Agostinho interpreta essa cena com palavras comoventes: “Ficaram apenas dois, a miséria e a misericórdia...”[1] O encontro final entre Jesus e a mulher revela a pedagogia divina: Ele não a condena, mas também não a isenta da responsabilidade. O convite final a nunca mais pecar(como repetimos no ato de contrição) é uma exortação à conversão genuína, na qual a misericórdia não anula a exigência da santidade.
Destarte, este Evangelho recorda a missão da Santa Igreja como Mãe Misericordiosa, que acolhe os pecadores sem transigir com a verdade. A comunidade dos batizadosé chamada a oferecer espaços de reconciliação, especialmente no sacramento da Confissão, onde cada fiel pode experimentar o olhar de ternura do Senhor, que perdoa sem relativizar o pecado. A pastoral ordinária devetrabalhar para que ninguém se sinta condenado definitivamente, mas sempre chamado à mudança de vida.
Somos, assim, direcionados para a necessidade de uma resposta concreta ao perdão recebido. Não basta ouvir a sentença libertadora de Cristo, é necessário caminhar em conformidade com a graça recebida. A Quaresma é tempo propício para o exame de consciência sincero, para a superação das hipocrisias e para a decisão de viver na Luz. O verdadeiro encontro com Cristo exige não apenas gratidão pela misericórdia, mas também empenho na conversão. Deus não deseja a perdição do pecador, mas sua salvação. A justiça divina não se realiza na destruição do culpado, mas na restauração da criatura amada. Jesus assume sobre si a condenação que caberia à humanidade, oferecendo a cada um a possibilidade de recomeçar. Este é o tempo favorável para abandonar o pecado e voltar-se inteiramente para Deus. A resposta ao chamado do Senhor não pode ser adiada: Ele olha com misericórdia, mas também convida à santidade. O caminho para a Páscoa passa por essa decisão radical: acolher o perdão e comprometer-se com a nova vida em Cristo.
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Nota:
[1] Escreve Santo Agostinho: “Ficaram apenas dois, a miséria e a misericórdia, pois segue: e ficou só Jesus com a mulher diante dele. Creio que aquela mulher estivesse assustada, pois esperava ser punida por aquele em quem não se podia encontrar culpa alguma. Ele, porém, que repelira seus adversários com a língua da justiça, volvendo a ela o olhar de mansidão, perguntou-lhe: Mulher, onde estão os que te acusavam? Ninguém te condenou? Respondeu-lhe ela: Ninguém, Senhor. Ouvimos acima a voz da justiça; ouçamos agora a voz da mansidão: Então Jesus disse: ‘nem eu te condeno’ – nem eu, por quem temias ser condenada, pois em mim não encontraste pecado. Como, então, Senhor? Incentivas o pecado? Não, absolutamente. Presta atenção ao que segue: Vai e não peques mais. Logo, o Senhor condenou, mas o pecado, não o homem. Se fosse fomentador do pecado, teria dito: ‘vai e vive como quiseres. Esteja segura de que eu te livrarei: por maiores que sejam os teus pecados, eu te livrarei da Geena e dos suplícios do Inferno’. Não é isso o que diz. Prestem atenção, pois, os que amam a mansidão do Senhor e temam a sua verdade, porque o Senhor é, a um só tempo, doce e reto.”.