Catedral de São Carlos entra na rota da Sagrada Cruz de Nosso Senhor
Fábio Tucci Farah* Foto: Sidney Prado
No século II, o rastro redentor de Jesus Cristo estava soterrado pelo paganismo romano. Em ruínas desde a primeira guerra judaico-romana, em 70 d.C., o imperador Adriano reconstruíra Jerusalém e a rebatizara de Aelia Capitolina, em homenagem ao deus Júpiter. Na nova cidade, o lugar escolhido para o templo de Vênus fora o terreno irregular além dos muros, palco das temíveis crucificações no tempo de Tibério. Nessa empreitada, os construtores fizeram aterros e muros de sustentação, sepultando os lugares mais sagrados do cristianismo: o Gólgota e o Santo Sepulcro.
Pouco menos de duzentos anos após a morte de Adriano, aquele legado seria destruído por ordem direta de seu sucessor, o imperador Constantino. Com quase 80 anos, a imperatriz-mãe Helena peregrinou à Terra Santa para acompanhar de perto algumas obras do Império. E fez uma descoberta extraordinária em uma cisterna a leste do Gólgota. Ao lado do bispo Macário, em um misto de canteiro de obras e sítio arqueológico, ela trouxe à tona a Cruz de Cristo e os Cravos que transpassaram Suas mãos e Seus pés. A descoberta seria como uma segunda ressurreição, quase três séculos após a ascensão de Jesus. Segundo Hermas Sozomenus, além de curar uma mulher moribunda, a Vera Cruz também teria ressuscitado um jovem!
Santa Helena não quis que os tesouros cristãos recém-descobertos fossem mantidos no mesmo lugar. Pelo relato de Sócrates, sabemos que a Cruz foi dividida. Pouco mais de dez anos após a missão da imperatriz-mãe na Terra Santa, pedaços do Santo Lenho se espalharam pelo Império. Em diversos santuários, as relíquias de Cristo tornaram-se luzeiros celestes, atraindo multidões de peregrinos.
A solenidade de entronização no Brasil
No último domingo, 17 de setembro, a Catedral de São Carlos, no interior de São Paulo, passou a fazer parte dessa rota sagrada. Em uma cerimônia presidida pelo bispo diocesano, dom Luiz Carlos Dias, e concelebrada pelo Pe. Sandro Portela, houve a entronização no templo de fragmentos da Vera Cruz, ladeados por outros da Coroa de Espinhos e da Sagrada Esponja. Com autentica expedida em 28 de junho de 1860, em Roma, por dom Francesco Marinelli, sacristão de Sua Santidade, essas relíquias provieram diretamente do tesouro do Papa Pio IX, beatificado por São João Paulo II. E a partir da solenidade, permanecerão em exposição perpétua.
O tesouro estava anteriormente custodiado no Oratorium Sanctus Ludovicus, estabelecido na Arquidiocese de São Paulo para dar suporte ao Apostolado das Sagradas Relíquias no Brasil. A doação de algumas relíquias faz parte da segunda etapa desse apostolado e a escolha da Catedral de São Carlos para iniciá-la teve uma motivação pessoal. Quando criança, eu costumava brincar no chão dessa catedral. Há quase vinte anos, já na vida adulta, fui recebido de volta à Igreja pelas mãos do monsenhor Luiz Cechinato, o padre que ali rezava as missas em minha infância – e hoje está sepultado na cripta.
A solenidade de entronização ocorreu no domingo seguinte à Festa de Exaltação da Santa Cruz, tradicionalmente celebrada em 14 de setembro. Pouco menos de trezentos anos após a incrível descoberta de Santa Helena, os persas invadiram Jerusalém e roubaram parte da Santa Cruz ali custodiada. A relíquia seria recuperada pelo imperador bizantino Heráclio, em 628. Na Idade Média, o beato dominicano Jacopo de Varazze registrou a prece entoada pelo monarca ao devolver a Cruz à Cidade Santa:
Ó Cruz mais resplandecente que o conjunto dos astros, célebre no mundo, tão amável aos homens, mais santa que tudo, a única que foi digna de portar o valor do mundo! Doce madeira! Doces cravos! Doce ponta de espada! Doce lança! Doce cruz que suportou tal peso! Salve os que aqui estão, sob seu estandarte, para louvá-la. (1)
Quase mil e quatrocentos anos após a Exaltação da Cruz conduzida por Heráclio, os paroquianos e visitantes da Catedral de São Carlos foram acolhidos sob o mesmo estandarte para louvar a insígnia da salvação, o triunfo de Cristo.
Outras relíquias da Santa Cruz no Brasil
Terra de Vera Cruz. O Brasil foi originalmente batizado em homenagem à relíquia do Santo Lenho. Em 1963, em uma cerimônia presidida por dom Antônio Ferreira de Macedo na Basílica de Aparecida, uma cruz especial foi colocada no topo da Torre Brasília. O que poucas pessoas sabem é que essa cruz é coroada por uma redoma de bronze com um fragmento do Santo Lenho trazido de Roma por dom Antônio. É um relicário lacrado a 119 metros de altura! Mas é uma recordação oportuna, na casa de nossa padroeira, do símbolo de nossa salvação e do nome original de nossa terra.
Mas esse não é o único relicário da Vera Cruz no topo de uma construção religiosa brasileira. Presenteado pelo Papa com a relíquia da Cruz, dom José Newton de Almeida Baptista, primeiro arcebispo de Brasília, decidiu colocá-la no alto da catedral da nova capital do país para que toda a cidade fosse abençoada pelo mistério da Cruz de Cristo. Atualmente, a relíquia e a Cruz Peitoral de dom José Newton estão guardadas no interior da cruz de doze metros de altura abençoada pelo Papa Paulo VI.
Em 26 de fevereiro de 2020, no fim da missa de Cinzas, o arcebispo de Fortaleza, dom José Antônio Aparecido Tosi Marques, anunciou a descoberta, no subsolo da catedral, de uma relíquia da Vera Cruz, acompanhada pela autentica. Naquele ano, a relíquia foi exposta aos fiéis durante a Quaresma. A relíquia havia sido originalmente enviada de Roma, em 1928, ao primeiro arcebispo de Fortaleza, dom Manuel da Silva Gomes.
A recente reforma no Santuário Nacional de São José de Anchieta, no Espírito Santo, também trouxe à tona uma relíquia do Santo Lenho, cujo relicário foi restaurado e posto em exibição na sacristia. Em seu acervo, o Museu de Arte Sacra de Niterói, anexo à Igreja de Nossa Senhora da Conceição, destaca uma relíquia da Sagrada Cruz também descoberta acidentalmente, em 2008. Na Sexta-Feira da Paixão, o relicário é levado para a Catedral São João Batista.
Em 18 de abril de 2020, o Pe. Cristiano José Benedito Chicuta sobrevoou Cesário Lange (SP) com uma relíquia da Santa Cruz para abençoar a cidade e suplicar pelo fim da pandemia da Covid-19 – suplicar pelo fim de epidemias na presença de relíquias é uma tradição da Igreja. A “relíquia voadora” pertence à Paróquia Santa Cruz e foi um presente do Papa João XXIII ao bispo auxiliar dom José Thurler, em 1962, durante a primeira sessão do Concílio Vaticano II.
As relíquias da Sagrada Cruz no Brasil
Ainda não há uma catalogação de todas as relíquias da Vera Cruz existentes no Brasil. Algumas já estavam esquecidas e foram redescobertas acidentalmente nos últimos tempos. Outras permanecem lacradas no alto de importantes construções religiosas, abençoando os católicos do país. Na Catedral de São Carlos, elas ficarão perpetuamente expostas.
Desde que devidamente atestadas pela autoridade eclesiástica competente, as relíquias da Santa Cruz remontam à descoberta feita por Santa Helena, ao lado de São Macário, há quase 1700 anos em uma cisterna a leste do Gólgota. E nos colocam frente a frente ao mistério central de nossa redenção. Como diz o hino composto por São Venâncio Fortunato após o convento de Santa Radegunda, em Poitiers, receber a relíquia da Vera Cruz: Fulget Crucis mysterium.
(1) Varazze, Jacopo de. Legenda Áurea – Vidas de santos. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 769.
* Perito em relíquias sagradas da Arquidiocese de São Paulo, delegado brasileiro da International Crusade for Holy Relics (ICHR) e curador adjunto da Regalis Lipsanotheca, em Ourém