ÁGUA: DIREITO HUMANO ESSENCIAL AMEAÇADO PELA MINERAÇÃO
Dom Vicente Ferreira
Bispo Auxiliar de Belo Horizonte (MG)
Água é elemento sagrado, essencial para a vida, exaltado pela Palavra de Deus. No princípio, “o espírito de Deus pairava sobre as águas” (Gn 1, 2); no dilúvio, a terra foi purificada pelas águas (Cfr. Gn 7); Moisés cantou a travessia pelo Mar Vermelho, como tempo de libertação (Cfr. Ex 15); o Filho de Deus foi banhado no Rio Jordão, em seu batismo (Cfr. Mt 3, 13); na cena do juízo final, ouvimos “estive com sede e me destes de beber” (Mt 25, 35) e nós, mergulhados nas fontes batismais, fomos inseridos na comunidade cristã. Sabemos, também, que nosso corpo é composto por quase 70% de água e, por isso, sua hidratação é fundamental para um bom funcionamento de seus órgãos.
Na Conferência das Nações Unidas, quando se debatia a questão de desenvolvimento e ambiente, na cidade do Rio de Janeiro, em 1992, foi lançada uma declaração universal dos direitos da água. O artigo 4º diz: “o equilíbrio e o futuro do nosso planeta dependem da preservação da água e de seus ciclos”. Depois disso, foi instituído, em 1993, o dia 22 de março como dia mundial da água. E, em resolução de número 64/292, em 28 de julho de 2010, a ONU também reconheceu o direito ao acesso à água potável e ao saneamento como direitos humanos essenciais ao pleno desfrute da vida. Passadas mais de duas décadas desses acontecimentos, Papa Francisco lançou a Laudato Si, em 2015, dizendo: “este mundo tem uma grave dívida social para com os pobres que não têm acesso à água potável, porque isto é negar-lhes o direito à vida radicado na sua dignidade inalienável” (LS, 30). Neste documento, o Papa Francisco reconhece que a disputa pela água potável certamente será um dos principais elementos de conflito de nossa civilização contemporânea.
São vários os fatores que comprometem os recursos hídricos globais. Para nossa reflexão, em cenários brasileiros, importa-nos pensar na mineração como uma das principais agressoras de nossas nascentes, rios, lençóis freáticos etc. Mesmo sabendo que há outras atividades predatórias da água, vamos nos deter nessa por pensar que ela deve ser questionada e interrompida se não quisermos, pelo menos em muitas partes do Brasil, sofrer com a escassez de água. Segundo o relatório temático Água: biodiversidade, serviços ecossistêmicos e bem-estar humano no Brasil, material publicado pela Editora Cubo, em 2020, “a mineração tem papel crítico pois ao mesmo tempo que depende dos corpos hídricos para garantir a eficiência dos processos que permeiam suas atividades, podem causar enorme impacto através da construção de barragens de rejeito e modificação da paisagem” (p. 55).
Sabemos que o Brasil possui a biota de água mais importante do mundo. Nossa fauna aquática é uma das mais ricas do globo, com 3 mil espécies. Mas a violência da ganância humana tem ferido muito nosso solo nacional, porque temos muito minério também. E os pobres são os mais prejudicados pelo pecado da idolatria do dinheiro que serve a uma parte muito pequena da sociedade global. Vemos, por todos os lados, as feridas da mãe terra, sagrando também em nós, porque tudo está interligado. Quem lida em territórios de extração mineral, sabe muito bem dos danos que ela causa aos seres vivos. É impossível pensar em mineração sem logo detectar inúmeras violações em relação aos recursos hídricos. Agressões ao meio ambiente e à população que vive em seu entorno, seja nas proximidades da cava e suas barragens de rejeitos de mineração, seja nos métodos de transporte dos minérios. Não podemos deixar de mencionar que, segundo dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a mineração é o setor que mais mata, mutila e adoece trabalhadores no mundo.
Outro grande problema é que quando uma mineradora se instala e inicia o processo de extração, sua atuação depende diretamente da água, seja para lavar o minério ou para transportá-lo, como é o caso dos minerodutos. Em 2008, a Votorantim, em Vazante, Minas Gerais, apareceu no relatório da FEAM, sobre os impactos gerados no município, no qual a população corria o risco de sofrer pelo afundamento dos terrenos e pela falta de água, devido ao alto volume utilizado pela empresa. A outorga concedida pela ANA (Agência Nacional de Águas) era de no máximo 2,6 milhões de litros por hora, porém, a utilização era superior a 7,5 milhões de litros por hora. Ainda sobre o consumo, existem dois desdobramentos, o primeiro é o rebaixamento do lençol freático e o segundo é a necessidade de retirar a água do subsolo para extrair o minério, tendo em vista que não existe tecnologia no setor que garanta a extração em espaços alagadiços. Nos municípios de Catalão e Ouvidor, em Goiás, as mineradoras Niobrás e Copebrás, no ano de 2019, foram autuadas pelo Ministério Público e obrigadas a instalar redes hidrométricas ou telemétricas para o monitoramento, em tempo real, das captações das vazões das águas subterrâneas e superficiais, devido à falta de água nos municípios.
Além desses conflitos ocasionados pelo alto consumo das mineradoras, há também as contaminações, que fazem parte tanto do processo dos grandes empreendimentos minerários, como também da extração garimpeira. Os conflitos na região amazônica, fomentados pelo atual Presidente da República, que envolvem garimpeiros, estão relacionados à invasão de territórios indígenas, mas também, à contaminação dos rios e, por consequência, dos povos que os têm como principal fonte de subsistência. Pois além da contaminação das águas, a biodiversidade aquática acaba sendo contaminada, o que se configura em um processo em cadeia. Como exemplo, recordamos o Amapá do povo Waiãpi, onde garimpeiros mataram um indígena por conta de disputa relacionada a contaminação do rio por mercúrio. Mas são as grandes mineradoras as maiores responsáveis por essas drásticas realidades. Temos como exemplo disso a cidade de Paracatu, MG, onde a empresa Kinross Gold extrai ouro. Estudos comprovam que existe uma alta contaminação da população por arsênio e a principal suspeita é que a contaminação esteja ocorrendo via consumo da água.
Ainda mais. Com a produção de seus rejeitos, as mineradoras represam rios para formação das barragens de contenção, desfigurando ecossistemas inteiros. Com o rompimento da barragem de Fundão, o Rio Doce foi devastado, afetando a vida de pelo menos 500 mil pessoas. Em 25 de janeiro de 2019, em Brumadinho, em mais uma tragédia/crime, da mesma mineradora Vale, com o rompimento de barragem do Córrego do Feijão, tivemos a morte de 272 pessoas e a destruição da preciosa bacia do Rio Paraopeba. Tudo isso acarretou em perdas irreparáveis para comunidades inteiras, com suas culturas, tradições e, sobretudo, com a impossibilidade de humanos e animais utilizarem a água contaminada. Sabemos que o Brasil possui, aproximadamente, 800 barragens de rejeito de mineração, muitas com risco de rompimento. Tudo isso nos faz perguntar: em benefício de quem estamos pagando um preço tão alto? Por que, diante de tantas tragédias, o governo atual tem flexibilizado, ainda mais, as leis de proteção ambientais? Como cristãos, à luz da conversão ecológica, qual o nosso papel diante dessa triste realidade?
Também não podemos nos esquecer que no ano de 2018, por duas vezes, o mineroduto (tecnologia utilizada no transporte de minério via tubos com pressão aquática), pertencente à empresa Anglo American, localizado na região de Santo Antônio do Grama, no Estado de Minas Gerais, rompeu-se. Com isso, a polpa de minério de ferro atingiu o Ribeirão Santo Antônio, deixando-o com coloração avermelhada. No mesmo ano, ocorreu no Polo Industrial de Barcarena, PA, o vazamento de bauxita, resultado das operações da empresa mineradora Hydro Alunorte. O instituto Evandro Chagas (IEC) coletou amostras da água e identificou contaminações. Os índices de sódio, chumbo, nitrato e alumínio estavam acima do permitido, além do PH estar no nível 10. Causa-nos ainda mais indignação saber que a abertura das terras indígenas para exploração mineral (PL 191/2020), ocasionará conflitos nos territórios pela utilização da água e, em consequência, sua contaminação.
Por fim, nossa esperança está nos inúmeros grupos de resistência dos atingidos, nas organizações, comissões sociais, movimentos eclesiais que têm surgido na defesa da casa comum. Trata-se, em muitos casos, de enfrentar processos políticos e jurídicos em defesa da dignidade da vida humana e ambiental. É importante que todos nós nos engajemos, em processos de conversão ecológica. Em pequenos grupos ou em grandes instituições. Vamos cuidar das nascentes que jorram, quem sabe, em nosso quintal. Mas também é urgente decisões mais amplas. Os córregos, rios e o mar devem ser protegidos, desde o mínimo gesto de não jogar nosso lixo nos mesmos, até na mudança desse sistema capitalista predatório, que é muito bem representado pelo sistema de mineração brasileiro que coloca o lucro acima da vida.